notas culturais, fragmentos do exílio - venturabravo [at] gmail [dot] com

21.11.13

teatrinho de cartão

ASSUMPTA — (...) Queres mais uísque?
RAPARIGA — Não.
ASSUMPTA — Eu sim. Quando me entusiasmo, tenho de beber. Enfim, sou assim! Então vamos lá à Ribera, o que é que queres saber afinal?
RAPARIGA — Dizem que... dizem que, de qualquer forma, a influência dela foi importante para vocês...
ASSUMPTA — Quem é que disse isso?
RAPARIGA (apanhada em falso) — Não sei ouvi dizer.
ASSUMPTA — Para começar: a Ribera era lésbica.
RAPARIGA — Como?
ASSUMPTA — Tudo bem, tenho o maior respeito pelas lésbicas. Às vezes são melhor companhia do que um homem. Quero dizer, a mim nunca me tocaram. Eu sou muito con-ven-ci-o-nal.
RAPARIGA (incrédula) — Era lésbica, a sério?
ASSUMPTA — A Ribera? Porra! O único homem que meteu na cama foi o irmão!
RAPARIGA — O quê? O que é que está a dizer? Que irmão?
ASSUMPTA — Qual é que havia de ser!  Só tinha um! O irmão dela, o grande actor Enric Ribera! Formavam uma dupla magnífica. No palco entendiam-se maravilhosamente. E na cama parece que também!

Josep M. Benet i Jornet, op. cit., pp. 117

20.11.13

dobragens

MARIA — (...) pensava ser actriz. Pensávamos as quatro. Nós três... e ela. Mas o Verão acabou e eu fui parar às dobragens. E por lá fiquei. Dou a minha voz a uma actriz de verdade, mudo a língua dela pela minha, procuro fazê-lo bem.  Já sei o que estão a pensar. Uma tarefa baixa, uma tarefa quase indigna. Pelo menos indigna de vocês- Um trabalho, aliás, bem efémero. Há cem anos as dobragens não existiam. E daqui a cem anos, penso eu, não quero ser profeta, também não hão-de existir. Haverá outra maneira, sei lá qual. Nessa altura, alguém vai encontrar a palavra "dobragem" numsítio qualquer, mas não vai perceber. Terá acabado. Pode ser que aconteça assim. Oh, que pena! Não vos dá pena? Lamento muito, mas sou o vosso espelho. Podem zangar-se, podem discutir qual das duas teve mais noites triunfais, mas  tudo passará, vocês e a vossa memória, assim como a memória das grandes ou pequenas obras que tenham representado. Porque é que não sossegam? Vamos lá, deixem correr o tempo e até Sahkespeare desaparecerá. Shakespeare? É um questão de tempo. (Pausa.) Não há futuro. Nada é imortal. E vocês no fundo supõem o contrário. Não, lamento. Nada. Saber isto ajuda a levar a vida com uma certa serenidade e sem ressentimentos. Sem qualquer ressentimento por histórias antigas de tempos passados. (Pausa.) Bem, pode ser que fique sempre um pouco de ressentimento. (Pausa.) Mudando de assunto. Sabes o que se diz de ti, Glòria? Que és frígida. E sabes o que se diz de ti, Assumpra? Que passaste por cima de toda a gente que se cruzou no teu caminho. (Pausa.) Agora podem-se ir embora. Boa noite.

Josep M. Benet i Jornet, op. cit., pp. 99-100

19.11.13

graças ao teatro


GLÒRIA — Apesar da morte do Sean, que foi o homem que mais amei, já há outro a ocupar-lhe o lugar. A vida, temos de a saber dominar. Não hei-de morrer frustrada. Fiz amor com um pianista que me excitava e me punha em brasa enquanto interpretava Mozart. Tive uma breve e vergonhosa aventura com um desses desgraçados que se dedicam à luta-livre; deixava-me arrasada e entretanto chorava de felicidade por andar a comer uma senhora como eu. Durante uns tempos andei às voltas com um guarda-costas que me obrigava a camuflar.me das maneiras mais insólitas, só porque o meu namorado era ministro. E depois... Ou antes, houve um mocinho de dezassete anos, italiano, que era tal qual uma pintura da escola veneziana, que nunca se saciava e foi um doce discípulo amoroso. E já que estamos sozinhas, confesso-vos. Conheci uma lésbica adorável e pensei: porque não? Não esteve nada mal. Com ou sem sexo pleo meio relacionei-me com metade das pessoas interessantes que ao longo destes anos saíram nos suplementos culturais dos jornais. Tudo isto graças ao teatro. E ainda, e sobretudo, o teatro proporcionou-me noites de uma intensidade fluorescente, noites de bebedeira emocional total. Tantas... nem sei qual é que escolhia. Ou talvez sim... Quando fui Climnestra no Odeon romano de Herodes Ático, debaixo da Acrópole. A minha voz ressoava junto às pedras onde ressoaram pela primeira vez aquelas mesmas palavras do primeiro dramaturgo da história. Lembro-me de levantar o rosto para o céu, de olhar o firmamento estrelado enquanto recitava o meu texto, e sentir que os séculos se fundiam, que o tempo desaparecia. Por um instante consegui vencer o monstro. (Pausa. Muda, menos transcendente.) Nunca representei no Epidauto, mas não se pode pedir tudo. À minha maneira soube dominar a vida, não vos parece? (Pausa.) Tenho que ir fazer chichi. Venho já.
Pausa.
MARIA — A rapariga tem viajado.
ASSUMPTA — E tem fodido. (Pausa.)

Josep M. Benet i Jornet, E.R. (1994) [trad. Ângelo Ferreira de Sousa, in Desejo e outras peças, Livrinhos de Teatro (25), Lisboa: Artistas Unidos / Livros Cotovia, 2007, pp. 93-94]
@ ventura bravo [venturabravo@gmail.com]


pesquisar no blogue

links

tags

livros (48) cinema (46) autobiografia (38) filmes (31) cinemateca (24) teatro (18) literatura (17) música (12) Rubem Fonseca (8) cinema norte-americano (6) concerto (6) Culturgest (5) Machado de Assis (5) Verão (5) jazz (5) Gulbenkian (4) Público (4) TV (4) Teatro Maria Matos (4) cultura (4) pintura (4) DocLisboa (3) John Huston (3) blogues (3) costumes (3) dança (3) exposições (3) melancolia (3) mulheres (3) musica (3) personalidades (3) política (3) políticas culturais (3) Album (2) Billy Wilder (2) Boris Barnet (2) California (2) Casa da Música (2) Christian Bale (2) Dexter (2) El País (2) Eric Rohmer (2) François Truffaut (2) Gabriela Canavilhas (2) Girls (2) Governo (2) Jean-Pierre Léaud (2) Memorial de Aires (2) Michael C. Hall (2) Pedro Mexia (2) Philip Roth (2) Ramón Lobo (2) Robert Bresson (2) San Francisco (2) Spike Jonze (2) The Humbling (2) Xavier Le Roy (2) escuta (2) impressões (2) jornais (2) le sacre du printemps (2) performance (2) reportagem (2) séries (2) trailers (2) vontade indómita (2) xkcd (2) 1969 (1) 9 (1) Adolfo Bioy Casares (1) Afeganistão (1) António Lobo Antunes (1) António Machado Pires (1) António Pinho Vargas (1) Beat the Deavil (1) Bored to Death (1) Burnt Friedman (1) Californication (1) Como me tornei monja (1) Culturgest Porto (1) César Aira (1) Darren Aronofsky (1) District 9 (1) Edward Norton (1) Eimuntas Nekrosius (1) El Espiritu de la Colmena (1) Electrelane (1) Eric Von Stroheim (1) Evan Parker (1) Festa do Cinema Francês (1) Francisco Colaço Pedro (1) Gonzales (1) Grizzly Bear (1) Guardian Books Blog (1) Henri Fantin-Latour (1) Henri Texier (1) Hugh Hefner (1) Invenção de Morel (1) Jacques Rivette (1) Jaki Liebezeit (1) James Gray (1) Jean Renoir (1) Jeanne Balibar (1) Joan Didion (1) Jonathan Mostow (1) Jonathan Rosenbaum (1) José Miguel Júdice (1) La Grande Illusion (1) Les 400 Coups (1) Louis Sclavis (1) Lubitsch (1) Luc Moullet (1) Ma nuit chez maud (1) Malcolm Lowry (1) Mark Deputter (1) Miami (1) Molly Young (1) Neil Blomkamp (1) Neutral Milk Hotel (1) Olivia Thirlby (1) Peter Evans (1) Philippe Quesne (1) Porto (1) Proust Questionnaire (1) Santo Agostinho (1) Serralves (1) Surrogates (1) Teatro Nacional São João (1) The Fantastic Mr. Fox (1) Timor-Leste (1) Under the volcano (1) Vanity Fair (1) Victor Erice (1) Werner Herzog (1) Wes Anderson (1) Where the wild things are (1) Yellow House (1) amizade (1) arte (1) averdade (1) bairro (1) bd (1) blogue (1) cebolas (1) cinema asiático (1) cinema de animação (1) cinema e literatura (1) confissões (1) culpa (1) câmara clara (1) desigualdade sexual (1) editorial (1) electrónica (1) exploração sexual (1) fake empire (1) fastasmas (1) free-love (1) glamour (1) guerra (1) homens (1) indiepoprock (1) ioga (1) joana (1) jovens (1) l'effet de serge (1) late youth (1) mulher (1) noite (1) nostalgia (1) nudismo (1) nytimes (1) portugueses (1) senhoras (1) sociedade (1) solo piano (1) the national (1) tráfico humano (1)

Seguidores