notas culturais, fragmentos do exílio - venturabravo [at] gmail [dot] com

25.2.10

Trás-os-Montes (António Reis 1)

Um dos aspectos mais interessantes do filme de António Reis e Margarida Martins Cordeiro tem certamente a ver com as relações do espaço e do tempo. Estamos habituados a descobrir uma região deslocando-nos no seu espaço. Mas por vezes podemos tentar fazer a história dessa região - deslocando-nos no seu tempo. O que Trás-os-Montes [1976] realiza, com uma prodigiosa naturalidade, é uma deslocação no espaço que é simultaneamente uma deslocação no tempo. Por outras palavras, a geografia converte-se em memória: é toda uma imensa riqueza de símbolos, lendas, ritmos, que se vem inscrever - pastoralmente - sobre o corpo da terra. Há aqui, nestes caminhos que não levam a parte alguma, um sabor heideggeriano: o cinema transforma-se em pastor do ser, que é talvez a lição dos admiráveis planos iniciais do frágil pastorinho conduzindo os animais ao seu destino. O que mais nele nos comove é o seu antiquíssimo saber da voz, que lhe permite formular as palavras justas, e essa agudíssima inconsciência de dum destino que o atravessa, sem que ele o pressinta, para além da evidência primeira de todas as coisas.

Eduardo Prado Coelho, Vinte anos de cinema português - 1962-1982
(1983, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa)
[links: 1, 2, 3]

nota: passou no dia 17 de Fevereiro (22h) na Cinemateca juntamente com a surpreendente (e belíssima) estreia de António Reis, Jaime (1974).


(segmento de Trás-os-Montes com os "admiráveis planos iniciais do frágil pastorinho")

the don'ts of writing (get rid of all temptations)

1 Marry somebody you love and who thinks you being a writer's a good idea.

2 Don't have children.

3 Don't read your reviews.

4 Don't write reviews. (Your judgment's always tainted.)

5 Don't have arguments with your wife in the morning, or late at night.

6 Don't drink and write at the same time.

7 Don't write letters to the editor. (No one cares.)

8 Don't wish ill on your colleagues.

9 Try to think of others' good luck as encouragement to yourself.

10 Don't take any shit if you can ­possibly help it.

(Richard Ford)

22.2.10

a luz que se perde

A experiência tem-me demonstrado que a luz de um autor latino-americano, é substancialmente diferente da luz escrita por um anglo-saxónico, um europeu, e que é um equívoco pretender que é sempre a mesma para os escritores do anel mediterrânico. Existe uma tal variedade de nuances, de gradações, nessa luz supostamente revelada ou iluminada por um escritor grego, egípcio, magrebino ou andaluz, que tornaria ridículo circunscrever a luz às cores pateticamente enunciadas pelo arco-íris, as estações do ano, as horas do e a memória.

Jorge Fallorca, a cicatriz do ar (2001, Black Sun Editores)

(nota: embora prefira a da Black Sun [talvez na livraria a Trama ou Letra Livre, há uma nova edição, de autor [2009], deste livro híbrido, para quem já não encontrar a primeira, oficialmente esgotada)

16.2.10

redes 'sociais' - virtualização e controlo (/vigilância)

Agora que apareceu o Google Buzz (novo desgraçado icon no gmail), fala-se do confronto entre Google e Facebook. Não é a batalha entre os dois que me interessa. Mas o de saber até quando se pode resistir, mantendo-se afastado de ferramentas de clara invasão da privacidade, de incómodo acesso a dados e informações que não queremos saber, mas aonde mais cedo ou mais tarde acabamos por aceder - aqui esvai-se a ignorância (ou uma certa ingenuidade), essencial para alguma paz de espírito: não queremos saber o que andam os amigos, ex-namoradas, inimigos a fazer; podemos ter curiosidade, porém, em última análise, prefere-se não saber.
Estas ferramentas também não são mais do que um aumentar da virtualização das relações (des)'h'umanas. A existência baseia-se em dados (zeros e uns) num espaço sem existência física (que é o espaço futuro). Relações que rejeitando a voz já se haviam acomodado ao 'desresponsável' sms (e é verdade que é mais fácil, mais fácil, e uma ilusão de contacto). Estamos em permanente contacto com todos, pode-se ser passivo e não actualizar os perfis sociais tornando-se assim ainda mais explícita a posição de voyeur (uma declaração de intenções), categoria a que todos (de uma forma mais ou menos mascarada) pertencem. A exaltação do voyeurismo, do exibicionismo, da espionagem e do controlo (surveillance).
As redes sociais da internet são (perigosas) ferramentas de informação (<-- reveladora, que pode ser prejudicial para os próprios utilizadores). E aderimos todos, voluntariamente, a esse espaço (virtual) de controlo (Big Brother), de monitorização humana - de encontros, reencontros (e desencontros). Sim, prefiro o acaso de um reencontro, ao digitar de um nome dos tempos do liceu. Esse clique muito pouco tem de reencontro, e o desdobrar de uma vida interrompida/ desaparecida, por exemplo, aos 17 anos pode ser um choque, uma surpresa, uma ilusão (/truque) - pensando bem há algo de novela de folhetim nestas relações/ reuniões virtuais: todos os dias, todas as semanas novos capítulos de vidas 'reais'(?) [ou romantizadas] a que temos acesso. A virtualização é um processo de miscigenação do real e da ficção (<-- do imaginário, da possibilidade): podemos reinventar-nos, criar desvios à nossa realidade/ existência (as mentiras sempre existiram, seja no contacto humano ou virtual - este mais propicio à desresponsabilização), o que já acontecia com os 'chats' (tempos do IRC). Preocupa talvez o facto de estas redes sociais, como o Facebook, já não serem só ferramentas de comunicação, mas lugares de existência, uma existência paralela à real (corpo, com corpo, de corpo, digo). E até que ponto, num futuro não muito distante será 'obrigatório' pertencer, nelas estar inscrito, para se existir enquanto 'pessoa' (virtual). Podemos brincar pensando numa transferência cada vez maior da existência humana do espaço real para o virtual (e nisto lembramo-nos de Matrix - onde o virtual é mais real que o real e o real é um inferno que quase ninguém quer viver [uma generalização, claro]).
Quando serei obrigado, talvez por questões profissionais(? e que outras, agora estou algo esvaziado), a aderir à partilha de dados, de movimentos, do rastreio. O Facebook (e afins) pertence à era pré-chip, é um momento de transição: é a habituação a novos mecanismos de controlo que acabará na vigilância permanente (o ideal de um chip[gps] em cada ser humano, que recolhe todos os dados fisiológicos e quem sabe mentais). Não sou apologista de um discurso catastrófico. As civilizações adaptam-se e alteram-se, adaptam-se a novos tempos: as sociedades (as ferramentas da web 2.0) crescem e destroem-se também. Nem tudo é mau. Há sempre alguma resistência. Mas a virtualização das relações humanas é uma merda.
A virtualidade não é algo que eu busque. E nas redes sociais só se aumenta a distância entre corpos: são mais os nomes, o contacto, maiores os equívocos, maior a superficialidade, porque a virtualidade, por enquanto, é apenas superfície, uma forma sem corpo. É por isso que alguma dança contemporânea me comove: os corpos, vivos, com texto, afectos, pulsões, intenções (des)ocultando-se. Preferível ver um amigo do outro lado do Oceano uma vez a cada dois anos, do que seguir-lhe a vida (sorrateiramente). Sou a favor da ignorância, do exílio (isolamento) no real.
@ ventura bravo [venturabravo@gmail.com]


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