Um dos aspectos mais interessantes do filme de António Reis e Margarida Martins Cordeiro tem certamente a ver com as relações do espaço e do tempo. Estamos habituados a descobrir uma região deslocando-nos no seu espaço. Mas por vezes podemos tentar fazer a história dessa região - deslocando-nos no seu tempo. O que Trás-os-Montes[1976]realiza, com uma prodigiosa naturalidade, é uma deslocação no espaço que é simultaneamente uma deslocação no tempo. Por outras palavras, a geografia converte-se em memória: é toda uma imensa riqueza de símbolos, lendas, ritmos, que se vem inscrever - pastoralmente - sobre o corpo da terra. Há aqui, nestes caminhos que não levam a parte alguma, um sabor heideggeriano: o cinema transforma-se em pastor do ser, que é talvez a lição dos admiráveis planos iniciais do frágil pastorinho conduzindo os animais ao seu destino. O que mais nele nos comove é o seu antiquíssimo saber da voz, que lhe permite formular as palavras justas, e essa agudíssima inconsciência de dum destino que o atravessa, sem que ele o pressinta, para além da evidência primeira de todas as coisas.
Eduardo Prado Coelho,Vinte anos de cinema português - 1962-1982 (1983, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa)
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