notas culturais, fragmentos do exílio - venturabravo [at] gmail [dot] com

4.8.09

Morel (2)

"Bate com a mão mesmo", Joana pediu.
Apoiado na mão direta, dei um tapa com a esquerda no rosto de Joana. Joana fechou os olhos, o rosto crispado, não emitiu um som sequer. Dei outro tapa, agora com a mão direita, com mais força.
"Bate, bate!"
Bati com violência. Joana deu um gemido lancinante. Continuei batendo, sem parar.
"Me chama de puta..."
"Sua puta!"
"Mais, mais!..."
Chamei Joana de todos os nomes sujos, bati com força no seu rosto. Nossos corpos cobertos de suor. Lambi o rosto de Joana, em fogo das pancadas recebidas. Nossas bocas sorviam o suor que pingava do rosto do outro. De dentro de mim, de um abismo fundo, vinha o orgasmo, uma pressão acumulada explodindo.
(O Caso Morel, 1973, de Rubem Fonseca)

Outro Morel literário (fantástico e com motivos de romance policial) é o da também estreia de Adolfo Bioy Casares (1914-1999), A Invenção de Morel (1940). Aqui, Morel é o cientista(/cineasta?)-holograma responsável pela arquitectura teórica do romance (o cinematógrafo que permite a ilusão do narrador-protagonista: os turistas rotineiros que não o vêem). O narrador, fugitivo, só, numa ilha de espectros (sombras cinematográficas), único corpo real numa trama virtual, persegue, em registo diarístico a mulher de Morel, Faustina, incorpórea, sem alma, condenada à eternidade.

O (Paul) Morel de Rubem Fonseca (O Caso de Morel), por sua vez, encarcerado numa (ilha-)cela viaja com seus escritos (de que se arrepende várias vezes) e com objectivos fixos de performance física: bater o record presidiário de mil flexões diárias.
A família - mote activado pelo artigo "A Sagrada Família" (P2 [Público], 2.8.09), de Pedro Mexia - é conceito lacunar e, ao mesmo tempo, nostálgico n'O Caso Morel. Paul Morel, esquelético e febril, com ar de pneumónico, alimenta-se (de), e consume-se em mulheres; tem devaneios e partindo deles quer formar uma família feliz: ele, macho alpha em alcateia de mulheres. Morel apegado a uma ideia oportunista e distópica de família.

(Lilian [Carmen])
(...) ser puta é muito chato, é muito melhor ser mulher de família... Tenho dito. (Lilian passa o microfone para Aracy.)
(Joana)
Porque de dia ele mata os porcos, os cabritos, ouve os bramidos e se cobre de sangue e à noite vai para a cama com a filha, a mulher que ele ama e que o ama, e assim, fazendo o que gosta, o inocente e bom homem só pode ter uma mente saudável.
(O Caso Morel)

Sem comentários:

Enviar um comentário

@ ventura bravo [venturabravo@gmail.com]


pesquisar no blogue

links

arquivo

tags

livros (48) cinema (46) autobiografia (38) filmes (31) cinemateca (24) teatro (18) literatura (17) música (12) Rubem Fonseca (8) cinema norte-americano (6) concerto (6) Culturgest (5) Machado de Assis (5) Verão (5) jazz (5) Gulbenkian (4) Público (4) TV (4) Teatro Maria Matos (4) cultura (4) pintura (4) DocLisboa (3) John Huston (3) blogues (3) costumes (3) dança (3) exposições (3) melancolia (3) mulheres (3) musica (3) personalidades (3) política (3) políticas culturais (3) Album (2) Billy Wilder (2) Boris Barnet (2) California (2) Casa da Música (2) Christian Bale (2) Dexter (2) El País (2) Eric Rohmer (2) François Truffaut (2) Gabriela Canavilhas (2) Girls (2) Governo (2) Jean-Pierre Léaud (2) Memorial de Aires (2) Michael C. Hall (2) Pedro Mexia (2) Philip Roth (2) Ramón Lobo (2) Robert Bresson (2) San Francisco (2) Spike Jonze (2) The Humbling (2) Xavier Le Roy (2) escuta (2) impressões (2) jornais (2) le sacre du printemps (2) performance (2) reportagem (2) séries (2) trailers (2) vontade indómita (2) xkcd (2) 1969 (1) 9 (1) Adolfo Bioy Casares (1) Afeganistão (1) António Lobo Antunes (1) António Machado Pires (1) António Pinho Vargas (1) Beat the Deavil (1) Bored to Death (1) Burnt Friedman (1) Californication (1) Como me tornei monja (1) Culturgest Porto (1) César Aira (1) Darren Aronofsky (1) District 9 (1) Edward Norton (1) Eimuntas Nekrosius (1) El Espiritu de la Colmena (1) Electrelane (1) Eric Von Stroheim (1) Evan Parker (1) Festa do Cinema Francês (1) Francisco Colaço Pedro (1) Gonzales (1) Grizzly Bear (1) Guardian Books Blog (1) Henri Fantin-Latour (1) Henri Texier (1) Hugh Hefner (1) Invenção de Morel (1) Jacques Rivette (1) Jaki Liebezeit (1) James Gray (1) Jean Renoir (1) Jeanne Balibar (1) Joan Didion (1) Jonathan Mostow (1) Jonathan Rosenbaum (1) José Miguel Júdice (1) La Grande Illusion (1) Les 400 Coups (1) Louis Sclavis (1) Lubitsch (1) Luc Moullet (1) Ma nuit chez maud (1) Malcolm Lowry (1) Mark Deputter (1) Miami (1) Molly Young (1) Neil Blomkamp (1) Neutral Milk Hotel (1) Olivia Thirlby (1) Peter Evans (1) Philippe Quesne (1) Porto (1) Proust Questionnaire (1) Santo Agostinho (1) Serralves (1) Surrogates (1) Teatro Nacional São João (1) The Fantastic Mr. Fox (1) Timor-Leste (1) Under the volcano (1) Vanity Fair (1) Victor Erice (1) Werner Herzog (1) Wes Anderson (1) Where the wild things are (1) Yellow House (1) amizade (1) arte (1) averdade (1) bairro (1) bd (1) blogue (1) cebolas (1) cinema asiático (1) cinema de animação (1) cinema e literatura (1) confissões (1) culpa (1) câmara clara (1) desigualdade sexual (1) editorial (1) electrónica (1) exploração sexual (1) fake empire (1) fastasmas (1) free-love (1) glamour (1) guerra (1) homens (1) indiepoprock (1) ioga (1) joana (1) jovens (1) l'effet de serge (1) late youth (1) mulher (1) noite (1) nostalgia (1) nudismo (1) nytimes (1) portugueses (1) senhoras (1) sociedade (1) solo piano (1) the national (1) tráfico humano (1)

Seguidores